terça-feira, 5 de março de 2013


A HISTÓRIA DA TEOLOGIA BÍBLICA [Parte I]

Dos Primeiros Séculos da História da Igreja até o Iluminismo

[Extraído da Apostila "Teologia Bíblica", de autoria do Pr. Almir Marcolino para a Disciplina de Teologia do NT do Seminário Batista do Cariri]

Introdução

                 Como disciplina, a Teologia bíblica foi impulsionada por três grandes movimentos: Reforma, Pietismo e Iluminismo. Vamos observar este desenvolvimento.

A - Os primeiros séculos da história da Igreja [1]

                Podemos falar da Teologia Bíblica no sentido de disciplina apenas após o último  livro da Bíblia ter sido escrito.  
Alguns intérpretes do início da Igreja não entenderam o conceito de revelação progressiva. Diante do problema de como interpretar o Antigo Testamento outros apelaram para o método alegórico, um exemplo foi a Escola de Alexandria com Clemente e Orígenes. Já outros, como Marcião, preferiram repudiar o Antigo Testamento. Orígenes Baseia-se na crença de que há um sentido espiritual por trás de cada sentido literal das Escrituras, da mesma forma que há um espírito no corpo de cada homem.  Todos os pormenores da escritura são símbolos de grandes realidades espirituais. Há um sentido literal, que está relacionado ao corpo. Um sentido moral, relacionado à alma. E um sentido espiritual, relacionado ao espírito, que é o mais importante. Esta foi uma forma de enfrentar a acusação quanto a alguns textos do AT, especialmente os que falavam da ira de Deus.

Que as Escrituras foram escritas pelo Espírito de Deus, e têm um significado, não apenas o que está aparente a primeira vista, mas também outro, o qual escapa do entendimento da maioria. Pois aquelas (palavras) que são escritas são as formas de certos mistérios e imagens das divinas coisas.  A respeito disto existe uma opinião através de toda a Igreja, que toda a lei é realmente espiritual, mas que o significado espiritual que a lei transmite não é conhecido de todos, mas apenas por aqueles que a graça do Espírito Santo capacitou em palavras de sabedoria e conhecimento.   [2]

A escola de Antioquia seguia a interpretação literal das Escrituras, mas não tenho conhecimento de como eles lidaram com a relação entre Antigo e Novo Testamento. Alguns entendem que Agostinho, com o livro Cidade de Deus, foi o que mais se aproximou da idéia de revelação progressiva.[3]
            Para fazer frente ao gnosticismo, que usava os mesmos textos da Igreja Cristã, mas lhe dava outra interpretação, a Igreja adotou o seguinte princípio:
           
“ o conteúdo dos escritos canônicos, se corretamente entendido, era idêntico ao dogma da Igreja e tido como de validade universal.” [4]           

            B - Na Idade Média


                O dogma eclesiástico regia o estudo bíblico.  As doutrinas eram fundamentadas não só na Bíblia, mas também na tradição da Igreja. A  Bíblia era usada para reforçar as doutrinas da Igreja. Tanto o Antigo como o Novo Testamento  eram considerados como parte da tradição eclesiástica, e não poderiam ser interpretados fora ou contra ela.

“Não a Bíblia somente, historicamente entendida, mas a Bíblia como interpretada pela tradição da Igreja era a fonte da teologia dogmática.[5].

                Podemos citar como exemplo a defesa que o Papa Bonifácio VIII fez da supremacia da Igreja Católica com seu poder espiritual sobre o temporal e da aceitação do pontífice romano como  doutrina necessária à salvação:

   "Bonifácio, bispo, servo dos servos de Deus. - Impelido pela nossa fé, somos obrigados a crer e sustentar que há uma Santa Igreja Católica e Apostólica. Firmemente cremos e professamos que fora dela não há salvação nem remissão de pecados, como declara o noivo do Cantares: “ Minha amada, minha imaculada não é senão uma; é a única de sua mãe; é a escolhida daquela que lhe deu o ser...” Porque, no tempo do dilúvio, só havia a arca de Noé, que prefigurava a única Igreja, e fora feita segundo a medida de um cúbito e tinha somente Noé por piloto e capitão, e fora dela toda criatura vivente que havia sobre a Terra foi, como lemos, destruída. A esta Igreja reverenciamos como a única pura, como o Senhor  disse ao profeta: “Livra minha alma da espada, minha amada do poder  do cão.” ... Ela é aquela túnica inconsútil do Senhor, que não foi dividida, mas sorteada ao lançar dos dados. ...
   Que nela se acha a possessão das duas espadas, no-lo ensinam os evangelhos, a saber, a espada espiritual e a espada temporal. Pois quando o Apóstolo disse: “Eis aqui - isto é, na igreja - duas espadas”, o Senhor não replicou aos Apóstolos: “É demasiado”, mas: “Basta” ... Conseqüentemente, estão ambas em poder da Igreja, isto é, a espada espiritual e a espada temporal - uma para ser usada pela Igreja e a outra para a Igreja; a primeira pela mão do sacerdote, e a segunda pela mão de príncipe e reis, mas com o assentimento e a instância do sacerdote. Uma espada deve necessariamente estar subordinada à outra, e o poder  temporal ao poder espiritual. ... Sendo patente a verdade, o poder espiritual tem a função de estabelecer o poder temporal e julgar do que seja ou não seja bom. E quanto à Igreja, e ao poder da Igreja, aplica-se a profecia de Jeremias: “Vê que te constituí hoje sobre as nações e sobre os reinos, para arrancares e demolires, para destruíres e derrubares, para edificares e plantares.”
   Se esse poder terreno se desvia do reto caminho, ele é julgado pelo poder espiritual, mas se um poder espiritual inferior se desvia do caminho justo, o inferior é julgado pelo superior; entretanto, se a suprema autoridade (o papado), se desviar, ele não pode ser  julgado por homem algum, mas somente por Deus. E assim testifica o apóstolo: “O que é espiritual julga todas as coisas, mas ele próprio não é julgado por nenhum homem.” [6]

            C - A Reforma 


                Houve uma reação ao ponto de vista anterior. “Dogmática deveria ser a formulação dos ensinos bíblicos.” O princípio  Sola Scriptura, que era um protesto contra a teologia escolástica e a tradição eclesiástica,  prepara o terreno para a TB.
                Como resultado desta reação tivemos: estudo das línguas originais, consciência da importância da história na teologia bíblica, interpretação literal. Tudo isto deu origem a uma verdadeira teologia bíblica.
                No entanto esta época tinha uma insuficiência na interpretação da Bíblia: o Antigo Testamento não era interpretado no seu contexto histórico, mas no contexto do Novo Testamento. Lutero elaborou uma nova hermenêutica: contraste entre letra e espírito; distinção entre lei e evangelho; princípio cristológico ( verdadeira escritura é a que manifesta Cristo ); analogia da fé. Com isto ele criou um cânon dentro do cânon.[7]
                Os precursores do termo Teologia Bíblica pertenciam à reforma radical, os anabatistas. O termo só vai aparecer pela primeira vez cem anos após a Reforma na obra Deutsche Biblische Theologie (1629) de Wolfgang Jacob Christmann. A obra Theologia Biblica (1643) de Henricus A . Diest – “é o primeiro documento a propiciar vislumbres da natureza de uma disciplina, que então nascia.[8]
                Várias outras obras são publicadas. A princípio a Teologia Bíblica constituía-se de textos-prova para manter a teologia, chamada também teologia exegética, era subsidiária da dogmática.

    “Compreendia-se que a teologia bíblica consistia de ‘textos de prova’ das Escrituras, extraídos indiscriminadamente dos dois Testamentos, de modo a apoiar os tradicionais sistemas de doutrinas da ortodoxia protestante primitiva.”[9]

                A expressão Teologia Bíblica  no sentido de “designar a teologia que a Bíblia em si contém”[10] é uma disciplina que tem pouco mais de 200 anos, e que na virada dos secs. XVIII e XIX se dividiu em duas (Antigo Testamento, Novo Testamento ).

            D. O Iluministo


                A Bíblia voltou a ser usada como texto-prova de doutrinas, a revelação progressiva não foi considerada [11]A Bíblia, no seu todo, foi estudada como possuindo um nível único de valor teológico.”[12]          O Pietismo  faz uma oposição entre o escolaticismo protestante e a teologia bíblica. A Teologia Bíblica  se separa da dogmática, e passa a ser considerada como fundamento desta.


                “A teologia bíblica como uma disciplina distinta é um produto do impacto do Iluminismo sobre os estudos bíblicos.” [13] Nesta época houve uma busca da completa objetividade, uma descrença no sobrenatural (surgimento do racionalismo); surge o método histórico crítico, que é uma nova hermenêutica, vê a Bíblia como qualquer outro livro antigo, a doutrina da Inspiração é abandonada. A Bíblia contava a história de uma religião semítica, e era o que certos homens pensaram sobre religião, e não uma revelação divina.

“ A razão humana tornou-se o padrão definitivo  e a fonte principal de conhecimento, isto é, a autoridade da Bíblia como registro infalível da revelação divina foi rejeitada.”[14]

                A TB se torna rival da dogmática. Palavra de Deus e Escritura Sagrada não são idênticas, nem todas as partes da Bíblia foram inspiradas e portanto ela deve ser investigada com uma metodologia histórica-crítica.
                O método histórico-crítico se desenvolveu. Com a revolução científica de Copérnico, Galileu e Kepler,  as ciências não eram mais interpretadas pela Bíblia. Esta separação transferiu-se para outras disciplinas. Todas  ficaram separadas da teologia, e esta passou a ser explicadas por aquelas ( história, filosofia, ciências), houve uma inversão, e onde houvesse uma contradição as outras disciplinas deveriam ser aceitas no lugar da Bíblia .




[1] Algumas notas de rodapé reportando-se ao livro de LADD são da versão mais antiga, da JUERP, outras da versão nova da Editora Êxodus.
[2] The Ante-Nicene Fathers,vol IV, pg. 457-459, De princípio, prefácio.
[3] Ferreira, Wilson C. ESBOÇO DE TEOLOGIA BÍBLICA DO NOVO E VELHO TESTAMENTOS, Campinas:Luz Para o Caminho, 1985. Pg. 26.
[4] HASEL, Gerhard F., Teologia do Novo Testamento, Questões Fundamentais no Debate Atual,  ( Trad. Jussara Marindir Pinto Simões Arias ), RJ, JUERP, 1988. Pg. 13
[5] LADD, George Eldon, A THEOLOGY OF THE NEW TESTAMENT, Grand Rapids, Eerdmans, Edição Revisada, pg. 1
[6] SCHAFF, David S. NOSSA CRENÇA E A DE NOSSOS PAIS, Confronto entre o Protestantismo e o Romanismo ( Trad. Nicodemos Nunes) SP, Imprensa Metodista, 1964. Pg. 613s
[7] Ver Institutas II. vi, 4.
[8] Hasel, Gerhard F. TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO- Questões fundamentais no debate atual (Trad. Cesar Bueno Vieira) RJ:Juerp1987. Pg. 14
[9] Hasel, Gerhard F. TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO, pg 14.
[10] HASEL, HASEL, Gerhard F., Teologia do Novo Testamento. pg. 15
[11] A revelação é progressiva - mistério no Novo Testamento (Ef e Cl); sombras, Hebreus, etc.
[12] LADD, op. cit. Pg. 14
[13] LADD, op.cit. pg. 14
[14] Hasel, Gerhard F. TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO, pg.15

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