A HISTÓRIA DA TEOLOGIA BÍBLICA [Parte I]
Dos Primeiros Séculos da História da Igreja até o Iluminismo
[Extraído da Apostila "Teologia Bíblica", de autoria do Pr. Almir Marcolino para a Disciplina de Teologia do NT do Seminário Batista do Cariri]
Introdução
A - Os primeiros séculos da história da Igreja [1]
Podemos falar da
Teologia Bíblica no sentido de disciplina apenas após o último livro da Bíblia ter sido escrito.
Alguns
intérpretes do início da Igreja não entenderam o conceito de revelação
progressiva. Diante do problema de como interpretar o Antigo Testamento outros apelaram
para o método alegórico, um exemplo foi a Escola de Alexandria com Clemente e
Orígenes. Já outros, como Marcião, preferiram repudiar o Antigo Testamento. Orígenes
Baseia-se na crença de que há um
sentido espiritual por trás de cada sentido literal das Escrituras, da mesma
forma que há um espírito no corpo de cada homem. Todos os pormenores da escritura são símbolos
de grandes realidades espirituais. Há um sentido literal, que está relacionado
ao corpo. Um sentido moral, relacionado à alma. E um sentido espiritual,
relacionado ao espírito, que é o mais importante. Esta foi uma forma de
enfrentar a acusação quanto a alguns textos do AT, especialmente os que falavam
da ira de Deus.
Que as Escrituras foram escritas pelo Espírito de
Deus, e têm um significado, não apenas o que está aparente a primeira vista,
mas também outro, o qual escapa do entendimento da maioria. Pois aquelas
(palavras) que são escritas são as formas de certos mistérios e imagens das
divinas coisas. A respeito disto existe
uma opinião através de toda a Igreja, que toda a lei é realmente espiritual,
mas que o significado espiritual que a lei transmite não é conhecido de todos,
mas apenas por aqueles que a graça do Espírito Santo capacitou em palavras de
sabedoria e conhecimento. [2]
A escola de
Antioquia seguia a interpretação literal das Escrituras, mas não tenho
conhecimento de como eles lidaram com a relação entre Antigo e Novo Testamento.
Alguns entendem que Agostinho, com o livro Cidade de Deus, foi o que mais se
aproximou da idéia de revelação progressiva.[3]
Para fazer frente ao gnosticismo,
que usava os mesmos textos da Igreja Cristã, mas lhe dava outra interpretação,
a Igreja adotou o seguinte princípio:
“ o
conteúdo dos escritos canônicos, se corretamente entendido, era idêntico ao
dogma da Igreja e tido como de validade universal.” [4]
B - Na Idade Média
O dogma eclesiástico regia o estudo
bíblico. As doutrinas eram fundamentadas
não só na Bíblia, mas também na tradição da Igreja. A Bíblia era usada para reforçar as doutrinas
da Igreja. Tanto o Antigo como o Novo Testamento eram considerados como parte da tradição
eclesiástica, e não poderiam ser interpretados fora ou contra ela.
“Não
a Bíblia somente, historicamente entendida, mas a Bíblia como interpretada pela
tradição da Igreja era a fonte da teologia dogmática.” [5].
Podemos citar como exemplo a defesa
que o Papa Bonifácio VIII fez da supremacia da Igreja Católica com seu poder
espiritual sobre o temporal e da aceitação do pontífice romano como doutrina necessária à salvação:
"Bonifácio, bispo, servo dos servos de
Deus. - Impelido pela nossa fé, somos obrigados a crer e sustentar que há uma
Santa Igreja Católica e Apostólica. Firmemente cremos e professamos que fora
dela não há salvação nem remissão de pecados, como declara o noivo do Cantares:
“ Minha amada, minha imaculada não é senão uma; é a única de sua mãe; é a escolhida
daquela que lhe deu o ser...” Porque, no tempo do dilúvio, só havia a arca de
Noé, que prefigurava a única Igreja, e fora feita segundo a medida de um cúbito
e tinha somente Noé por piloto e capitão, e fora dela toda criatura vivente que
havia sobre a Terra foi, como lemos, destruída. A esta Igreja reverenciamos
como a única pura, como o Senhor disse
ao profeta: “Livra minha alma da espada, minha amada do poder do cão.” ... Ela é aquela túnica inconsútil
do Senhor, que não foi dividida, mas sorteada ao lançar dos dados. ...
Que nela se acha a possessão das duas
espadas, no-lo ensinam os evangelhos, a saber, a espada espiritual e a espada
temporal. Pois quando o Apóstolo disse: “Eis aqui - isto é, na igreja - duas
espadas”, o Senhor não replicou aos Apóstolos: “É demasiado”, mas: “Basta” ...
Conseqüentemente, estão ambas em poder da Igreja, isto é, a espada espiritual e
a espada temporal - uma para ser usada pela Igreja e a outra para a Igreja; a
primeira pela mão do sacerdote, e a segunda pela mão de príncipe e reis, mas
com o assentimento e a instância do sacerdote. Uma espada deve necessariamente
estar subordinada à outra, e o poder
temporal ao poder espiritual. ... Sendo patente a verdade, o poder
espiritual tem a função de estabelecer o poder temporal e julgar do que seja ou
não seja bom. E quanto à Igreja, e ao poder da Igreja, aplica-se a profecia de
Jeremias: “Vê que te constituí hoje sobre as nações e sobre os reinos, para
arrancares e demolires, para destruíres e derrubares, para edificares e plantares.”
Se esse poder terreno se desvia do reto
caminho, ele é julgado pelo poder espiritual, mas se um poder espiritual
inferior se desvia do caminho justo, o inferior é julgado pelo superior; entretanto,
se a suprema autoridade (o papado), se desviar, ele não pode ser julgado por homem algum, mas somente por
Deus. E assim testifica o apóstolo: “O que é espiritual julga todas as coisas,
mas ele próprio não é julgado por nenhum homem.” [6]
C - A Reforma
Houve uma reação ao
ponto de vista anterior. “Dogmática
deveria ser a formulação dos ensinos bíblicos.” O princípio Sola
Scriptura, que era um protesto contra
a teologia escolástica e a tradição eclesiástica, prepara o terreno para a TB.
Como resultado desta reação
tivemos: estudo das línguas originais, consciência da importância da história
na teologia bíblica, interpretação literal. Tudo isto deu origem a uma
verdadeira teologia bíblica.
No entanto esta época tinha uma
insuficiência na interpretação da Bíblia: o Antigo Testamento não era interpretado
no seu contexto histórico, mas no contexto do Novo Testamento. Lutero elaborou
uma nova hermenêutica: contraste entre letra e espírito; distinção entre lei e
evangelho; princípio cristológico ( verdadeira escritura é a que manifesta
Cristo ); analogia da fé. Com isto ele criou um cânon dentro do cânon.[7]
Os
precursores do termo Teologia Bíblica pertenciam
à reforma radical, os anabatistas. O termo só vai aparecer pela primeira vez
cem anos após a Reforma na obra Deutsche
Biblische Theologie (1629) de Wolfgang Jacob Christmann. A obra Theologia
Biblica (1643) de Henricus A . Diest – “é
o primeiro documento a propiciar vislumbres da natureza de uma disciplina, que
então nascia.”[8]
Várias
outras obras são publicadas. A princípio a Teologia Bíblica constituía-se de
textos-prova para manter a teologia, chamada também teologia exegética, era
subsidiária da dogmática.
“Compreendia-se que a teologia bíblica
consistia de ‘textos de prova’ das Escrituras, extraídos indiscriminadamente
dos dois Testamentos, de modo a apoiar os tradicionais sistemas de doutrinas da
ortodoxia protestante primitiva.”[9]
A
expressão Teologia Bíblica no sentido de “designar a teologia que a Bíblia em si contém”[10] é uma disciplina que tem pouco mais de 200
anos, e que na virada dos secs. XVIII e XIX se dividiu em duas (Antigo
Testamento, Novo Testamento ).
D. O Iluministo
A Bíblia voltou a
ser usada como texto-prova de doutrinas, a revelação progressiva não foi
considerada [11]
“ A Bíblia, no seu todo, foi estudada como
possuindo um nível único de valor teológico.”[12]
O Pietismo faz uma oposição entre o escolaticismo
protestante e a teologia bíblica. A Teologia Bíblica se separa da dogmática, e passa a ser
considerada como fundamento desta.
“A teologia bíblica como uma disciplina distinta é um
produto do impacto do Iluminismo sobre os estudos bíblicos.” [13] Nesta época houve uma busca da completa objetividade,
uma descrença no sobrenatural (surgimento do racionalismo); surge o método
histórico crítico, que é uma nova hermenêutica, vê a Bíblia como qualquer outro
livro antigo, a doutrina da Inspiração é abandonada. A Bíblia contava a
história de uma religião semítica, e era o que certos homens pensaram sobre
religião, e não uma revelação divina.
“ A razão humana tornou-se o padrão definitivo e a fonte principal de conhecimento, isto é,
a autoridade da Bíblia como registro infalível da revelação divina foi
rejeitada.”[14]
A
TB se torna rival da dogmática. Palavra de Deus e Escritura Sagrada não são
idênticas, nem todas as partes da Bíblia foram inspiradas e portanto ela deve
ser investigada com uma metodologia histórica-crítica.
O
método histórico-crítico se desenvolveu. Com a revolução científica de
Copérnico, Galileu e Kepler, as ciências
não eram mais interpretadas pela Bíblia. Esta separação transferiu-se para
outras disciplinas. Todas ficaram
separadas da teologia, e esta passou a ser explicadas por aquelas ( história,
filosofia, ciências), houve uma inversão, e onde houvesse uma contradição as
outras disciplinas deveriam ser aceitas no lugar da Bíblia .
[1]
Algumas notas de rodapé reportando-se ao livro de LADD são da versão mais
antiga, da JUERP, outras da versão nova da Editora Êxodus.
[2] The Ante-Nicene Fathers,vol IV, pg. 457-459, De
princípio, prefácio.
[3]
Ferreira, Wilson C. ESBOÇO DE
TEOLOGIA BÍBLICA DO NOVO E VELHO TESTAMENTOS, Campinas:Luz Para o Caminho,
1985. Pg. 26.
[4]
HASEL, Gerhard F., Teologia do Novo
Testamento, Questões Fundamentais no Debate Atual, ( Trad. Jussara Marindir Pinto Simões Arias
), RJ, JUERP, 1988. Pg. 13
[5] LADD, George Eldon, A THEOLOGY OF THE NEW TESTAMENT,
Grand Rapids, Eerdmans, Edição Revisada, pg. 1
[6]
SCHAFF, David S. NOSSA CRENÇA E A DE NOSSOS PAIS, Confronto entre o
Protestantismo e o Romanismo ( Trad. Nicodemos Nunes) SP, Imprensa Metodista,
1964. Pg. 613s
[7]
Ver Institutas II. vi, 4.
[8]
Hasel, Gerhard F. TEOLOGIA DO
ANTIGO TESTAMENTO- Questões fundamentais no debate atual (Trad. Cesar Bueno
Vieira) RJ:Juerp1987. Pg. 14
[9]
Hasel, Gerhard F. TEOLOGIA DO
ANTIGO TESTAMENTO, pg 14.
[10]
HASEL, HASEL, Gerhard F., Teologia do
Novo Testamento. pg. 15
[11]
A revelação é progressiva - mistério
no Novo Testamento (Ef e Cl); sombras, Hebreus, etc.
[12] LADD, op. cit. Pg. 14
[13] LADD, op.cit. pg. 14
[14]
Hasel, Gerhard F. TEOLOGIA DO
ANTIGO TESTAMENTO, pg.15
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